terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O espelho de um guarda-roupa.


(...)

II

Um homem
com um espelho (feito
um segundo esqueleto)
embutido no corpo
não pode
bruscamente voltar-se para trás
não pode
juntar nada do chão
e quando dorme
é como um acrobata
estendido sobre um relâmpago

Um homem com um espelho
enterrado no corpo
na verdade não dorme: reflete
um vôo

Enfim, esse homem
não pode falar alto demais porque os espelhos só guardam
(em seu abismo)
imagens sem barulho

III

Carregar um espelho
é mais desconforto que vantagem:
a gente se fere nele
e ele
não nos devolve mais do que a paisagem

Não nos devolve o que ele não reteve:
o vento na copas
o ladrar dos cães
a conversa na sala
barulhos
sem os quais
não haveria tardes nem manhãs

Ferreira GULLAR!